terça-feira, 13 de setembro de 2022

Dançando no escuro num templo de cristais

Eu a tomo delicadamente em meus braços,

Ela aninha-se apaixonada,

Para em seguida,

Arquear o corpo,

O maestro gesticula para que comece a música e apaguem-se as luzes,

Nossos primeiros passos são desajeitados, mas convictos,

E nos olhos do outro temos as bússolas que usaremos

(sim, pelo menos quatro delas, cada uma apontando para um lugar diferente),

Na maior parte do tempo o maestro e a orquestra tocam pachelbel,

Dançamos com leveza, graça e desenvoltura,

Mas quem escolheu o lugar da dança,

Escolheu uma templo cheio de cristais,

E escolheu, não se sabe o porquê, apagar as luzes,

E se o próprio soar do bombo já faz tremerem as finas peças de cristais,

Alguns de nossos movimentos, 

Tantos os ajeitados quanto os desajeitados,

Os deitam ao chão em pedaços,

Está escuro demais para ver,

Então pode ser que tenham caído poucos e restem muitos ainda,

E assim a dança continua,

Mas o maestro preocupa-se com a música, não com os cristais,

Então às vezes ele toca a 9a sinfonia de Beethoven,

E daí dançamos frenética e loucamente,

E o som que sentimos em nossas peles é o de uma chuva de cristais,

Nada que se possa reclamar,

Nós, o casal, aceitamos a chegada do maestro,

Nós, o casal, trouxemos nossas finas peças para o salão de apresentação, 

Porque queríamos algo memorável, idílico, transcendente,

E ninguém estava de brincadeira neste assunto,

Sim, é um espetáculo, o show de nossas vidas sendo vividas e consumidas,

Sim, é lindo dizem os espectadores,

Mas já disseram antes:

"Tudo o que nasce deve morrer, passando pela natureza em direção à eternidade",

E assim também com nossos sonhos,

E com nossas conversas intermináveis,

E com nosso sexo carnal,

E com nossa bolha,


A música parece chegar ao fim,

Estamos exaustos e a essa altura os cristais quebrados já nos fazem sangrar bastante,

O maestro contudo demora em encerrar,

Faz milhares dessas apresentações por aí e não cansa nunca,

Também não é a carne dele que sangra,


Sentamos no chão, olhos nos olhos, 

Choramos,

Nos abraçamos,

A música pára,

O silêncio reina,

O escuro nos abraça também,


Nessa hora não sabemos quantos cristais sobraram em nosso templo,

O tempo dirá,

E o tempo dirá também quando for a hora de nos apresentarmos de novo,

Outro templo, outros cristais, 


O maestro tresloucado espera sem pressa.


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E com trilha sonora pop:




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E no interlúdio: